Espuma dos dias, Populismo e Anti-Populismo — “O Populismo, Eis o Inimigo!” Por Thomas Frank

 

Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

15 m de leitura

O Populismo, Eis o Inimigo! (*)

(*) Original em inglês: The People, No: A Brief History of Anti-Populism (2020)

 Por Thomas Frank

Publicado por  em 28 de Outubro de 2021 (original aqui)

 

O jornalista americano Thomas Frank, cujas obras Pourquoi les pauvres votent à droite et Pourquoi les riches votent à gauche (original em inglês Listen, Liberal, or, What Ever Happened to the party of the People) continuam a ser autoridade na matéria, está de volta com um novo livro intitulado, não sem ironia, Le populisme, voilà l’ennemi! (Agone, 2021) (original em inglês, The People, No: A Brief History of Anti-Populism – 2020). Este é um slogan que é na realidade específico do anti-populismo que satura o discurso das elites, brandindo a arma da razão face às paixões populares. Contudo, seria errado acreditar que este fenómeno é específico do século XXI: a história erudita que Thomas Frank traça mostra, pelo contrário, como o anti-populismo está presente na cena política americana desde a fundação do Partido do Povo em 1892 e como manifesta um antidemocratismo que não ousa dizer o seu nome. Ao contrário da opinião comum, Thomas Frank argumenta que a solução para o mal-estar contemporâneo pode ser “populista” – na condição de se renovar com a esperança de que era originalmente portador e de rejeitar a ideia contra-revolucionária de que a política não é para todos. As linhas que se seguem são retiradas do Capítulo VIII, “Culpemos agora os ignorantes”.


 

A longa controvérsia sobre o populismo que tracei neste livro é, em parte, uma questão de imagem e retórica. Mas envolve também uma questão fundamental: como devem os liberais conceber a sua relação com o país que querem renovar e com as pessoas que querem liderar? Um modelo liberal – o paradigma elitista – admira a perícia e conta com os profissionais sobrequalificados para tomar as decisões certas em nosso nome. O outro – o modelo populista – confia nas pessoas comuns como os derradeiros repositórios do génio democrático.

Durante muitos anos, o Partido Democrata seguiu o modelo populista: esse foi o objetivo do liberalismo para muitos dos seus líderes. Mas a partir dos anos 70, a missão começou a mudar. Através de inúmeros debates internos do partido, os democratas vieram a ver-se não como a voz dos trabalhadores, mas como uma espécie de agrupamento dos sábios e dos virtuosos.

Ironicamente, chegaram a este ponto de vista no preciso momento em que o populismo, como hostilidade generalizada aos poderes estabelecidos, estava a varrer o país. Desde a Madison Avenue até às ondas de rádio musicais das suas pequenas cidades monótonas, os americanos de todos os quadrantes viram-se como rebeldes contra regras, tradição e autoridade. Até os conservadores se fizeram passar por insurretos. O único grupo que parecia ter dificuldades de adaptação a este novo clima era o Partido Democrata.

É assim que chegamos finalmente à síntese desastrosa a que os muitos fios contraditórios deste livro nos conduziram: enquanto os conservadores começaram a utilizar a trombeta da sua revolta, os liberais voltaram-se contra ela. Tornaram-se anti-populistas.

A fação dominante do Partido Democrata decidiu que não queria participar em nenhuma crítica sistemática às grandes empresas, monopólios ou à indústria financeira. Tem sido relutante em construir ou apoiar qualquer movimento de massas. A ideia de reunir uma coligação de trabalhadores tornou-se  para este Partido uma fonte de profunda repugnância .

Desprezando ideologia e as paixões, argumentando que os nossos problemas eram de natureza técnica – em suma, é a isto que a filosofia democrata se resumiria em breve. A resposta certa à ofensiva de classe da direita, começaram os Democratas a dizer a si próprios, é deixarmos de nos reclamar como fazendo parte da tradição populista e sair completamente da ideologia.

Desprezar a ideologia e as paixões, argumentar que os nossos problemas eram de natureza técnica – é a isto que a filosofia democrata se viria depois a resumir.

Se a compararmos com os sucessos eleitorais dos Democratas durante a era do New Deal, temos de admitir que esta estratégia não foi particularmente bem sucedida. No entanto, nenhum dos seus muitos revezes ao longo dos anos levou os seus líderes a inverter a decisão de se tornarem o partido da elite de colarinho branco. Pelo contrário, os Democratas usaram todo o poder que tinham para apoiar o sector dos bancos de investimento e para fazer negócios comerciais destinados não a desenvolver a indústria americana mas antes a sugá-la. Postos em causa pelos eleitores que estavam a pagar o preço por estas políticas, os Democratas sacaram das suas mangas os economistas e os cientistas políticos para explicar aos trabalhadores que tudo o que lhes estava a acontecer era o efeito do destino, do próprio progresso económico. A situação não deveria ser alterada. Tinha de ser aceite e suportada.

A própria palavra ‘populismo’ era considerada um anátema pelos pensadores do partido. Em 1992, num livro amplamente celebrado, o aprendiz de pontífice Mickey Kaus aconselhou os democratas a abandonar a causa tradicional da igualdade económica e a resistir àqueles a quem chamava “populistas liberais”: os democratas devem deixar de ouvir os sindicatos, dizia ele, e fazer uma rutura clara com a “sub proletariado” negro [1]. Tais declarações eram comuns nas publicações do Conselho de Liderança Democrata (DLC), onde os populistas eram definidos como aqueles que “resistem às mudanças trazidas pela Nova Economia” e lamentam em vão “os dias gloriosos” quando os americanos tinham “empregos estáveis nas grandes empresas” [2].

A referência às “grandes empresas” não era desinteressada, mas em substância o argumento foi sempre o mesmo. Para os Democratas, os populistas eram pessoas que insensatamente recusavam o futuro, chorando sobre os seus queridos trabalhadores nómadas quando todos viam que os únicos que importavam agora eram os profissionais de colarinho branco, a ‘classe do conhecimento’, para usar a fórmula co-inventada pelo politólogo William Galston. O que o dinamismo inovador desta classe representava era o poder do ensino superior e a forma como “milhões de americanos estavam em vias de se juntar às fileiras da classe média alta e dos ricos”, declarou um manifesto do DLC de 1998 co-escrito por Galston [3]. Os americanos estavam a ficar inteligentes, os americanos estavam a ficar ricos. Por conseguinte, o Partido Democrata devia tornar-se o partido dos ricos e inteligentes, dos “eleitores de topo mais instruídos” que queriam planos de poupança-reforma privados mas estavam um pouco menos entusiasmados com as escolas públicas. Numa das suas muitas denúncias de populismo, Al From, figura de proa do Partido Democrata, recitava: “Na era industrial, a classe trabalhadora dominava o eleitorado. Mas o novo eleitorado da era da informação é cada vez mais dominado por eleitores de classe média e média alta que vivem nos arredores das grandes cidades, trabalham na nova economia, são culturalmente tolerantes e têm opiniões políticas moderadas” [4].

Esta pós-ideologia depressa se tornou o senso comum da fação dominante do partido. Tendo deixado o New Deal para trás, os Democratas reinventaram-se como líderes de uma era de inovação e flexibilidade, abundância e sofisticação, de banqueiros de investimento e bilionários das novas tecnologias. Quando chegou a sua vez de ocupar o poder em 2008, estes líderes de novo estilo recusaram-se a desmembrar os bancos de Wall Street. Desenvolveram uma forma de seguro de saúde nacional que, surpreendentemente, não prejudicava a Big Pharma ou os seguros privados. Brilhando de exuberância futura, os executivos do Sillicon Valley tinham invadido a Casa Branca de Obama e estavam abancados na campanha presidencial da sua sucessora, Hillary Clinton, para conduzir a nação a uma nova era dourada de cibertransformação.

Até ao fim, esta fantasia pós-ideológica da classe da informação continuou a andar com um passo tranquilo e um porte orgulhoso. Um mês antes das eleições de 2016, o Presidente Obama organizou no South Lawn da Casa Branca uma variação do famoso festival de inovação do Texas, South by South West, rebatizado para a ocasião “South by South Lawn”. Sob um céu perfeito de Outubro, as estrelas de Hollywood cruzaram-se com cientistas climáticos perante um público selecionado (após um processo de candidatura baseado no mérito) que podia olhar para obras de arte conceptuais coloridas e ouvir soluções criativas para a pobreza ou para as doenças. E no seu tom habitual de simplicidade de menino bonzinho, o Presidente disse estar confiante de que ultrapassaríamos o aquecimento global “porque somos o sector económico e empresarial mais inovador e dinâmico do mundo”. Foi o último momento de garantia suprema do liberalismo consensual, uma atuação tão impecável que um jornalista fã não conseguiu resistir a apelidar Obama de nosso “comandante fixe” [5].

Alguns meses depois daquela maravilhosa tarde, a campanha presidencial democrata que contava instalar tranquilamente Hillary Clinton na cadeira de Obama foi a ilustração perfeita desta imperturbável autossuficiência. Se o objetivo último da política moderna era a “afinidade entre as elites” (como Edward Shils o disse em 1956), então os Democratas chegaram sem dúvida ao nirvana nesse Outono. A campanha Clinton não só prometeu consenso, abrindo a sua mesa a representantes de Wall Street, Silicon Valley e do aparelho de segurança nacional, como era, ela própria, um ato de consenso. Todas as ortodoxias tinham o seu lugar. Por uma vez, a candidata democrata angariou e gastou mais dinheiro na sua campanha do que a campanha do seu rival republicano. Nas cidades universitárias do país e nas periferias chiques da classe do conhecimento, ela foi aclamada como a encarnação da inevitável vitória.

Tal como em 1936, a “afinidade entre as elites” incluía economistas profissionais, 370 dos quais assinaram uma carta aberta exortando a não votarem em Donald Trump. Envolveu também a imprensa, com jornalistas a tomarem o partido de Clinton numa forma de solidariedade da classe do conhecimento. Ela esmagou Trump na corrida pelo apoio dos títulos dos jornais, com cinquenta e sete dos maiores jornais do país do lado de Clinton para apenas dois com Trump; e 96% do dinheiro doado por jornalistas durante a campanha presidencial foi para Clinton. Quase todas as sondagens encomendadas pelos media disseram que Clinton ganharia facilmente. Em Outubro de 2016, o New York Times noticiou que ela estava a concentrar a sua campanha nos estados republicanos a fim de alargar a sua certa vitória sobre o Trump racista [6].

Então, a 8 de Novembro, o impensável aconteceu. O impostor bilionário conseguiu ganhar uma grande proporção dos estados industriais em declínio do Midwest, e com eles a presidência. Atordoada com o desastre, a América de colarinho branco afundou-se num “medo da democracia” semelhante aos que descrevi neste livro. Mais uma vez, o populismo foi identificado como o culpado: foi o espírito político maléfico que permitiu Trump e assombrou os pesadelos dos abastados. O facto de Trump não ter ganho, de facto, a maioria dos votos não retardou de todo esta narrativa convincente; nem o facto de o seu populismo ter sido uma completa farsa: para os bem instruídos e abastados, aquele velho refrão familiar do anti-populismo tornou-se o novo hino unificador do nosso tempo.

Mais uma vez, o populismo foi identificado como o culpado: foi o espírito político maléfico que permitiu Trump e assombrou os pesadelos dos abastados.

Lawrence Goodwyn, o grande historiador das revoltas democráticas de massas, escreveu que para construir um movimento como o Partido do Povo dos anos 1890 ou o movimento sindical dos anos 1930 era necessário “relacionar-se com as pessoas como elas são na sociedade, por outras palavras, num estado que os observadores modernos informados tendem a considerar como um estado de “consciência insuficiente” ” [7]. Esta ideia era tão importante para Goodwyn que ele a reformulou algumas páginas mais adiante: uma condição essencial de um movimento democrático de massas é “aceitar a consciência humana no seu estado atual” [8].

Goodwyn também advertiu contra uma política de “virtude individual”, essa tendência para “celebrar a pureza” do nosso suposto radicalismo. Se se quer democratizar a estrutura económica do país, argumentou ele, é necessária “paciência ideológica ” [9], uma suspensão do juízo moral sobre os americanos comuns. Só então poderemos começar a construir um movimento poderoso e promissor que possa mudar a sociedade definitivamente [10].

Se não estiver interessado em democratizar a estrutura económica do país, então o modelo de virtude individual pode ser apenas aquilo de que necessita. Os cidadãos comuns são então tratados por sentença e purga, por anulação e repreensão. Não se trata de construção mas de pureza, de moralidade imaculada. A sua operação favorita é a subtração, a sua forma retórica favorita é a denúncia, e o seu objetivo é manter a coorte dos virtuosos na estreita órbita do mais virtuoso de todos os virtuosos.

O que esmagou enormes sectores do liberalismo americano após o desastre de 8 de Novembro de 2016 foi o oposto da “paciência ideológica” de Goodwyn. É a repreensão no seu pior, uma fúria de fazer saber aos eleitores de Trump que tipo de pessoas inadequadas e mesmo perfeitamente péssimas elas foram. A tendência elitista que tem vindo a avançar de forma constante entre os liberais desde há décadas, tem vindo a precipitar-se para a sua coroação ruidosa e de mau gosto.

Onde o populismo é otimista em relação aos eleitores comuns, a variedade do liberalismo que tenho em mente olha para eles com uma mistura de desconfiança e repugnância. Sonha não em sindicalizar a humanidade, mas em policiá-la. É um géiser de admoestações pronto a irromper contra qualquer adolescente que tenha cometido um ato de apropriação cultural, contra a escolha inadequada de um papel por um determinado ator, contra o discurso público cujas ideias não são do seu agrado, contra a descarga ilegal de resíduos domésticos, contra a técnica de poda inadequada vista num subúrbio vizinho. O seu objetivo típico não é, como o populismo, retomar o controle dos bancos e monopólios, mas sim criar uma organização sem fins lucrativos, seduzir os bancos e os monopólios para obter financiamento e depois… culpar o mundo inteiro pelos seus pecados.

Os populistas em tempos sonharam com aquilo a que chamavam uma “sociedade cooperativa”, mas hoje é uma sociedade vingativa que inspira o renovador, uma utopia de culpa onde o tribunal se senta dia e noite e onde os virtuosos nunca deixam de proferir as sentenças mais duras sobre os seus inferiores económicos e morais. […]

Lá onde o populismo é otimista em relação aos eleitores comuns, a variedade do liberalismo que tenho em mente olha para eles com uma mistura de desconfiança e repugnância. Sonha não em sindicalizar a humanidade, mas em policiá-la.

É uma geração de liberais centristas que desesperam coletivamente da própria democracia. Tendo virado as costas à questão dos trabalhadores, que tradicionalmente constitui o núcleo da problemática dos partidos de esquerda, os democratas assistiram com os braços cruzados à demagogia da ala direita a criar raízes e a florescer. Depois, quando o povo finalmente assimilou a torrente de propaganda pseudo-populista que tem chovido sobre ele nos últimos cinquenta anos, os democratas voltaram-se contra a própria ideia de ” povo ” [11].

A América foi fundada com a frase “Nós, o Povo”. No entanto Galston pede-nos para superar a nossa obsessão com a soberania popular. Como ele escreve em Anti-Pluralismo, a sua acusação de 2018 contra o populismo, “devemos pôr de lado esta crença estreita e presunçosa: existem alternativas viáveis ao povo como fonte de legitimidade ” [12].

Certamente. Nas páginas deste livro, vimos anti populistas explicarem que merecem governar porque são mais qualificados, ou mais ricos, ou mais racionais, ou trabalham mais duramente. A cultura contemporânea de perpétua culpa moral enquadra-se perfeitamente nesta forma de pensar: reproduz simplesmente a velha fantasia elitista.

Se o establishment liberal é anti populista, não é apenas porque não gosta de Trump – que não é um verdadeiro populista – mas porque este liberalismo é quase o oposto do populismo. A sua ambição política não é juntar as pessoas num movimento de renovação, mas sim culpá-las, envergonhá-las e ensiná-las a serem submissos  aos seus superiores hierárquicos. Não procura punir Wall Street ou Silicon Valley – de facto, o mesmo gangue que reprime, anula e faz listas negras foi incapaz de encontrar uma forma de punir os banqueiros de elite após a crise financeira global em 2009. Este liberalismo quer fundir-se com estas instituições de privilégio privado, para utilizar o seu poder na sua cruzada pela sua ideia de “o bem”. Os prósperos distritos liberais da América tornaram-se utopias da culpa porque é através da culpa que este tipo de concentração de poder económico se relaciona com os cidadãos comuns. Isto não é “autoritarismo da classe trabalhadora”, é autoritarismo da classe do conhecimento. As pessoas no topo, diz-nos este tipo de liberalismo, têm mais do que o leitor porque merecem ter mais do que o leitor: estas pessoas simpáticas dominam-no porque são melhores do que o leitor.

Talvez a diferença mais consistente entre o populismo e o seu oposto seja uma diferença de humor. O populismo era e continua a ser incuravelmente otimista – sobre as pessoas, sobre as possibilidades políticas, sobre a vida e sobre a América em geral.

O anti-populismo só fala de desespero. Olha com amargura para os humanos comuns. A sua aspiração para a redenção da humanidade é nula. A sua visão do bem comum é sombria. O seu humor sinistro dá-nos livros com títulos como “Defesa do Elitismo” ou “Contra a Democracia”.

O auge do sinistro é atingido quando o anti-populismo considera as alterações climáticas. Estou a pensar numa peça amplamente comentada que apareceu no New York Times em Dezembro de 2018, cerca de dois anos após a eleição de Donald Trump ter destruído a bem ordenada visão do mundo da classe do conhecimento. O artigo não é em si mesmo uma declaração política, mas o professor de filosofia que o escreveu, Todd May, é um conhecido ativista anti-Trump na universidade onde ensina. Esta publicação na página de opinião do New York Times, a derradeira montra da opinião liberal, pareceu-me um ato político: o veredicto final da elite desmoralizada sobre uma população teimosa que se recusa a ouvir os seus avisos, alimenta-se de mentiras e prefere obstinadamente demagogos ridículos a especialistas responsáveis.

O tema de May é a extinção da humanidade: deve ou não acontecer? O professor formula a sua acusação da humanidade com uma certa delicadeza, mas é impossível não ver onde quer chegar. Somos uma espécie perigosa, ataca, “causando um sofrimento inimaginável a muitos dos animais que habitam” a Terra. Cita as alterações climáticas e a agricultura industrial como as piores das nossas ofensas e diz que, “se a história acabasse aí, não seria uma tragédia. A eliminação da espécie humana seria uma coisa boa, pura e simplesmente isso”.

Mas há outras considerações a ter em conta , admite o professor. As pessoas por vezes fazem coisas louváveis. Por outro lado, seria cruel “exigir aos seres humanos que acabem com as suas vidas”. Finalmente, a solução de May não é a de escolher: “É bem possível que a extinção humana seja uma coisa boa para o mundo, e ainda assim é uma tragédia”.

Este tipo de pessimismo cerebral, esta aspiração velada à morte da espécie, é uma atitude que hoje em dia está em todo o lado nos círculos liberais iluminados – ver toda a literatura sobre o ‘antropoceno’. É o lado inverso inevitável da política hipócrita que descrevi neste capítulo: o salário dos nossos pecados, a recompensa pela nossa estupidez incorrigível.

Sempre que lido com sentimentos como este no matadouro do idealismo que é Washington, a minha mente vagueia de volta à boa velha Chicago, um lugar barulhento, enferrujado e amargo sobre o qual nunca ninguém se sente nostálgico, mas onde gosto de recordar como os americanos comuns viveram as suas vidas, com a cabeça posta no trabalho, no jogo, e no sucesso, talvez, um dia.

Penso em Carl Sandburg, o “poeta do povo” do século XX, um homem que não via contradição entre a vida humana e o pecado humano. E penso no seu “Chicago”, o maior de todos os poemas populistas, que reconhece a vulgaridade da cidade, todos os seus sórdidos pecados: “Dizem-me que és má”; “Dizem-me que és verme”; “Dizem-me que és brutal” – tudo tão verdadeiro hoje como era em 1914.

Mas ‘Chicago’ não é um hino de culpas. É um repúdio de culpas. É um canto sobre amar a vida apesar de tudo, sobre amar a vida das pessoas, mesmo no meio de todo este horror industrializado e desgastante:

Debaixo do fumo, com a boca cheia de pó, a rir com os seus dentes brancos,

Sob o terrível peso do destino a rir como ri o jovem,

Rindo mesmo como ri o pugilista ignorante que nunca perdeu um combate,

Exibindo-se e rindo por sentir o bater do coração debaixo do seu punho,  e o coração do povo debaixo das suas costelas.

A rir!

___________

Notas

[1] Mickey Kaus, The End of Equality, Basic Books/A New Republic Book, New York, 1992, p. 173.

[2] Robert D. Atkinson, «Who Will Lead in the New Economy ?», Blueprint, 2 junho 2000.

[3] William A. Galston et Elaine C. Kamarck, «Five Realities That Will Shape 21st Century Politics», Blueprint, outono 1998.

[4] Al From, «Building a New Progressive Majority», Blueprint, 24 janeiro 2001.

[5] O festival «SXSL» teve lugar em 3 de outubro de 2016 e pode-se encontrar uma descrição do processo de seleção do público bem como a fórmula «comandante fixe» em Erin Coulehan, «Commander in Cool», Salon, 26 setembro 2016.

[6] Sobre a oposição dos jornalistas a Trump, ler Jim Rutenberg, «Trump Is Testing the Norms of Objectivity in Journalism», New York Times, 7 agosto 2016; David Mindich, «For Journalists Covering Trump, a Murrow Moment», Columbia Journalism Review, 15 julho 2016. Sobre o seu financiamento da campanha de Clinton: Dave Levinthal e Michael Beckel, «Journalists Shower Hillary Clinton with Campaign Cash», Columbia Journalism Review, 17 outubro 2016. Sobre a campanha de Clinton nos Estados republicanos, Matt Flegenheimer e Jonathan Martin, «Showing Confidence, Hillary Clinton Pushes into Republican Strongholds», New York Times, 17 outubro 2016. Ler também Nate Silver, «There Really Was a Liberal Media Bubble», FiveThirtYeight.com, 10 março 2017.

[7] Ler Lawrence Goodwyn, «Organizing Democracy: The Limits of Theory and Practice», Democracy, 1981, vol.1, no1, p. 51 – sublinhado por Goodwyn.

[8] Ibid., p. 59.

[9] Wesley Hogan, Many Minds…, op. cit.

[10] Lawrence Goodwyn, resp. The Populist Moment… (op. cit., p. 292) e «Organizing Democracy» (art. citado).

[11] Ler David Adler, «Centrists Are the Most Hostile to Democracy, Not Extremists», New York Times, 23 maio 2018.

[12] William Galston, Anti-Pluralism…, op. cit., p. 22 – Galston não subscreve expressamente nenhuma destas «alternativas viáveis».

 


O autor: Thomas Carr Frank [1965-] é um analista político, historiador, e jornalista americano. Foi co-fundador e editor da revista The Baffler. De 2008 a 2010, escreveu “The Tilting Yard”, uma coluna no The Wall Street Journal. É o autor dos livros What’s the Matter with Kansas? How Conservatives Won the Heart of America (2004), The Wrecking Crew: How Conservatives Rule (2008), Listen, Liberal, or, What Ever Happened to the party of the People (2016), Rendez Vous with Oblivion: Reports from a Sinking Society (2018), The People, No: A Brief History of Anti-Populism (2020), entre outros.

Um historiador de cultura e ideias, Frank analisa tendências na política e propaganda eleitoral americana, publicidade, cultura popular, jornalismo mainstream, e economia. Os seus tópicos incluem a retórica e o impacto das guerras culturais na vida política americana e a relação entre política e cultura nos Estados Unidos. É licenciado em História pela Universidade da Virginia e doutorado pela Universidade de Chicago. (consulta em Wikipedia, aqui)

 

 

 

 

 

 

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